A atribulada sexta-feira na faculdade terminou de forma triunfante. Sim, estávamos cansados da maratona de provas; Tatá tava com dor de cabeça; acabei esquecendo meus sapatos em casa... Mas a energia era outra! Não nos deixamos abalar! Ajustamos os ponteiros da última atuação durante a preparação e na dança tropeçamos inesperadamente no vazio. E como foi bonita essa queda. :)
Após um mês, estávamos novamente na nefrologia. Guardo boas recordações daquela atuação. Ao invés de sonhar para acessar as memórias daquele dia, resolvi reencontrar com cada um dos pacientes e reviver as boas recordações. Como foi bom reencontrá-los e ser reconhecidos por eles! :) Além de reencontros, tive belos encontros, digamos amor a primeira vista, com a disponibilidade de Kátia, que sentia fortes dores depois do exame; com as limitações de Daci, que até se recusava a conversar com a staff; com o surpreendido Arnaldo, que a partir de agora espera mais visitas inesperadas, com a Joseane Carretel; com orientações de relacionamento dadas pela Rosângela e Irineu...
Entretanto, gostaria de construir meu diário de uma forma diferente, com algo inusitado e, ao mesmo tempo, memorável. Durante nossa visita na hemodiálise, chamou-nos atenção a intervenção de um médico para com os seus pacientes. Presenciamos seu cuidado em explicar suas situações clínicas, em consolar seus momentos de fraquezas diante da gente, atitudes até então nunca vistas por mim na academia. Até que no final da nossa visita na hemodiálise, ele nos abordou e perguntou se fazíamos psicoterapia. De imediato, pedimos discretamente para conversar com ele depois da atuação. E assim fomos. Com muita simplicidade e humildade, ele nos perguntou se fazíamos parte de um grupo de teatro. Sabendo depois que éramos estudantes de medicina, reconheceu que sentia até ciúmes da gente, pelo fato de obtermos muitas informações em tão pouco tempo, que ele próprio demora para conseguir pouco. Até nos recomendou a busca de apoio psicológico ao longo da graduação, para cuidarmos da nossa saúde mental. Além disso, nos apoiou em dar continuidade ao projeto, uma vez que o lado humanístico da Medicina está indissociável da parte científica, por isso o estudo deve ser valorizado e direcionado, não para o nosso ego, e sim para os pacientes! Devemos estudar por eles! Eles que precisam de todo suporte nessa fase da vida tão frágil e desnuda. E isso é o mais belo da Medicina: não é o fato de "darmos a vida ao doente" ou até mesmo "curar os mais necessitados", e sim prestar assistência para um ser humano desnudo de preconceitos e fracos organicamente. Isto é belo! Por isso, é tão fácil conversar sobre coisas inimagináveis com os pacientes, uma vez que eles estão carentes de atenção e apoio. Esse cara nos deu um banho de aprendizagem. Ao longo dessa semana, tive a última aula com o professor Petrus, e dentre os seus ensinamentos cristãos, após o fim da aula, ele me pediu para sempre encher meu pote com doses homeopáticas de "sal da terra". Como assim? É buscar temperar esse mundo sem sabor e sem graça; é fazer uma revolução cotidiana, mesmo silenciosa; é imprimirmos às nossas ações aquela discrição e ao mesmo tempo doçura e firmeza essenciais; é sermos um pontinho de luz, suficientes para iluminar nosso caminho, que às vezes se vê ao longe, renova a esperança de quem o avista, e dá a certeza de uma caminho seguro. Sejamos a diferença nesse mundo sendo sal e luz, mesmo silenciosamente.
Acredito que a atuação dessa sexta-feira foi um marco para mim. Parece que comecei o projeto agora. Seja bem vindo, Tuberculino Bang Bang. Termino a semana levantando um pouco a minha cabeça e abrindo os olhos. O horizonte é distante. O pote ainda é pequeno. O caminho é longo. Recentemente venho passando metamorfoses. Segue um poema de José Régio de 1925, um português que descreve um pouco meu sentimento hoje.
Cântico Negro
"Vem por aqui" - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus ironias e cansaços)
E cruzo os braços
E nunca vou por aí...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca princípio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui!"
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!
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