Eu não sabia exatamente o quão diferente seria a experiência de ir ao COB. Sabia que era um espaço com algumas particularidades, mas nunca imaginaria que tudo fosse parecer tão especial. Safifi já tinha ido antes uma vez, e ela meio que me conduziu até os banheiros/vestuários. Não sei se deixei transparecer, e não sei direito como representar a sensação que tive nesse processo, parecia aquelas sequências em filmes de ficção científica em que o leigo que serve de POV pros espectadores é apresentado à história ou aos fundamentos da tecnologia que viabilizaram a construção da máquina do tempo/portal interdimensaional/bomba de antimatéria que se encontra por detrás daquela imensa e proeminente porta no fim do corredor. Não consigo pensar em nenhuma forma mais adequada de aludir ao que senti durante aquele caminho. Enquanto estou me maquiando um funcionário vem falar comigo, dizendo que é palhaço, que trabalha com casa de festas e que tinha atuado com palhaços de algum dos projetos aqui de Recife, mas que não tinha sido deixado, ou preferiram que ele não continuasse... Não entendi direito, mas fiquei pensando se a gente não podia ver de tentar alguma vez um trabalho com esses outros palhaços que não são de projeto, ver se tem coisa que dá pra tirar disso boa pros dois lados, sei lá.
A atuação em si foi complicada. Tinha muita gente no COB, e a gente perdeu absolutamente a noção do tempo, acabamos super cansados, atuando tempo demais pro corpinho mau preparado da gente. Das histórias, acho que esse foi um dia que condensou muita coisa complicada. O que eu senti mais forte nesse dia e que eu carrego em questionamento que seja mais específico do que rolou lá foi o caso de uma paciente, que contou pra gente que na madrugada daquele dia tinha nascido seu filho no corredor, e que ela tinha feito o parto sozinha, sem acompanhamento de ninguém da equipe médica. O bebê ia rolando da cama para o chão, mas ela conseguiu segurá-lo com a perna e evitar a queda. Contou isso pra gente claramente consternada, irritada com o descaso e o descuido do serviço, sofrida pela ideia de que podia ter perdido seu filho ou tido outros problemas durante o parto por conta da falta de atenção dos trabalhadores de lá, da enfermeira que estava por perto mas que não levou em consideração os seus chamados e pedidos de ajuda. Estávamos com ela, tentando fortalecê-la de alguma forma nesse processo, valorizar o que tinha conseguido fazer, admirados que estavamos com sua resiliência, força de vontade, capacidade de lidar com aquela situação de tanta adversidade, e do lado passara alguém da equipe que fizera uma piada com a história, e eu não consegui não sentir descaso naquela fala. Outra passara e não dera atenção ao relato, e olhara pra mim, como se esperando que eu me colocasse em seu favor, como parte da equipe de saúde do hospital, que sei das dificuldades gerais do serviço e que esse tipo de coisa acontece mesmo e é normal que isso aconteça e faz parte e se a gente ficar se aperreando com toda vez que alguma coisa assim acontecer a gente não dorme de noite em casa... E eu fiquei sem saber como me colocar dentro dessa situação. Sou parte dos profissionais de saúde, mas como palhaço tenho um papel bastante particular de estar junto do sujeito, independente se este é ou não paciente, de identificar suas demandas e construir com ele, e assim sendo tem horas que vai ser de um jeito e horas que vai ser de outro.
Acho que a brincadeira acaba por vezes ofuscando muita coisa, como a moça que ao chegarmos desata de rir, que nos conta que perdeu o filho no dia anterior, e que era seu aniversário, que tinha passado o tempo todo antes chorosa e agora pendia pro outro extremo como ocorre por vezes. Rir é uma coisa fundamental pra saúde, conseguir fazer piada, tirar de letra, mas se a gente cair muito nisso acaba se perdendo e não se ganhando vida e saúde. Acho que em primeira instância há de vir o reconhecimento do sofrimento, de alguma forma, sempre. Não dá pra desconsiderar ele no nosso trabalho, deixar ele de lado, em suspenso. Pelo menos eu não consigo. Me parece que temos um papel muito importante de promotores de saúde e educadores de saúde exatamente porque temos condição de entrando ali nos colocar com relação ao doído e sofrido, e tentar puxar o que o sujeito tem de recursos para lidar com isso, que estão adormecidos ou anestesiados ou esquecidos. Se existe algo que poderia ser entendido como uma atuação melhor, seria uma que permite isso com mais intensidade, essa mudança, uma que puxa consigo uma resposta mobilizada de um sujeito agora mais disposto e motivado a lutar por sua saúde e pela daqueles que estão próximos. Não é só 'vai-ficar-bom', é o que tem agora que a gente pode fazer que é bom, que não vai curar a doença, ou trazer de volta o filho, ou ainda sanar as deficiências estruturais do hospital, mas que vai dentro de uma perspectiva de cuidado dar suporte ao humano que tem ali e que está por vezes tão sufocado por todos os lados por máquinas e protocolos e medicamentos e rotina e olhares neutros. E quem sabe nesses poucos e fugídios momentos de encontro que podem parecer tão passageiros dentro do contínuo infinito que é o viver de cada um, a gente não consiga fazer algo que por vezes o SUS não é capaz com suas equipes multiprofissionais, que os hospitais particulares não alcançam com seus quartos particulares impecáveis e suas máquinas de alta tecnologia: o suficiente.
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