sexta-feira, 2 de junho de 2017

Consternações

Eu ando me resolvendo bem tranquilo com as coisas religiosas. Falo isso porque antes não era assim,  e não me refiro especificamente ao meu tempo de palhaço, mas a meu tempo de distanciamento da religião, que foi quase que absoluto por alguns anos. Enfim, como venho de um outro lugar nesse espectro, a maior parte de minha vida não tive que conversar muito com as pessoas de outras tradições religiosas sobre suas matrizes e crenças, ouvir delas o que sentem e acreditam. No hospital não tem muito como fugir da presença divína, e no caso de nossa realidade, essa matriz é católica ou evangélica. Fico me questionando se meu palhaço devia também ser judeu, se isso importa tanto pra mim que precisa aparecer também nesse trabalho. Me pergunto isso porque sou isso, e sei que se eu não reafirmar isso continuamente a identidade se perde. Existe dentro do judaísmo uma tradição muito forte de guardar, de manter, mas também uma de se perguntar e se questionar e se ver nisso. É ser judeu em todo o momento, com tudo aquilo que vem carregado nesse conceito e tudo aquilo que a gente quer ou gostaria que pudesse existir. Acho que poucas matrizes religiosas possibilitaram tanta diversidade para uma mesma identidade compartilhada, ainda que exista um establishment absolutamente averso ao que aconteceu de renovação nos últimos duzentos anos, de reconhecer que existe uma comunidade imaginária que cresce em cima da ideia de judaísmo, que é riquíssima e super diversa. Mas enfim, não faz muito sentido essa discussão tomar deste espaço. O que eu queria dizer só YO é que faz algum tempo, uns poucos anos, que eu decidi que iria vestir meu judaísmo, mostrar isso na forma, nas palavras e nos símbolos que uso dia-a-dia, mas daí vem esse outro ato de vestir e por ele não passa o meu ser judeu, e eu fico encucado sem saber o que eu sou, se eu sou mais palhaço ou mais judeu, se é harmoniosa essa dissociação ou se sofro com ela de alguma forma que acabo não cuidando de perceber.
Outra coisa que fica sempre lá marcada é a questão da sexualidade. Sou homem, verdade. Estou atuando com uma mulher. Verdade. Mas precisa mesmo sempre ser isso que é visto? Existem, claro, pessoas que vão estar mais ligadas e mobilizadas para falar dessas questões e outras que não vão tocar no assunto, mas eu queria muito sair de uma atuação sentindo que isso não foi sequer aludido em algum momento por alguém. Tenho que confessar que muitas vezes é dificil para mim me sentir motivado a brincar em cima dessas questões a não ser que seja brincando de fugir delas. Daí que a única conclusão que eu achei para um cara que começou com uma história gigantesca da cobra que o homem tem que vai atrás da fruta da mulher foi dizer que eu ia cortar a minha cobra fora, porque eu não queria envenenar ninguém. Literalmente me senti obrigado a recorrer à castração. Castração! Sem pesar o lado psicanalítico disso mas já pesando, puta que pariu, sabe? Queria que fosse mais tranquilo essas coisas pra mim. Ainda não tá sendo. Acho que preciso ter uma experiência mais extensa com alguém que se resolva melhor nisso, ou que se resolva no outro extremo com essas referências e alusões e conotações, para ver se consigo encontrar um meio termo.
Para além dessas questões, que vieram todas muito forte especialmente em um quarto e de uma mesma pessoa, queria deixar registrado que essa pessoa começa falando de ser crente, de pregar, do trabalho disso e de como o trabalho da gente também é bonito e que agora ela ia parar de falar para ver a gente, como se fossemos ali apresentar um ato, uma gag bem ensaiadinha, e simplesmente seguimos atuando. E ela trouxe que queria ver a gente, que a gente ainda não tinha atuado mais umas três vezes durante o tempo que passamos alí, e a gente continuou fazendo o que a gente faz, e concluímos sem gag e nada e cadê da pessoa lembrar quando estavamos indo embora que tinha faltado a apresentação dos palhacinhos? Mais do que isso, tinha pedido pra gente que fizesse algo, e foi uma das pessoas que mais se mostraram precisadas de falar até hoje. Acho muito doido como rola de mesmo nas horas que mexem pesado com o que a gente tem lá dentro da gente que a gente consiga ser uma outra coisa ali, mas não acho que a gente deva se sentir obrigado a isso. É só uma coisa que na maioria das vezes acaba acontecendo. A gente acaba conseguindo dissociar, entender que é da pessoa e não da gente. Mas claro que tem limite. E que tem que saber que tem limite. Penso no caso com a menina na pediatria, do dedo do meio.
A pergunta que me aparece agora é se eu de fato me senti ofendido por aquilo ou se fui mobilizado porque sei que socialmente isso não é reconhecido, que uma criança não tem o direito de fazer isso para outra pessoa na frente de adultos, ao passo que todo mundo pode falar o que quiser do sexo e do desejo que tem - desde que seja normativo - e do sexo e do desejo que o outro deve ter e eu não acho que posso reclamar disso na maior parte do tempo. É diferente de que forma, e por que responder á primeira situação faz sentido e responder à segunda não faz?

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